quinta-feira, 29 de março de 2007

“O cheiro do Ralo” será uma obra-prima?

Essa é a coluna do Jabor de terça feira no Globo, na Folha e em mais um monte de jornais Brasil afora. Quem não leu, vale a pena ler. Tô amarradaço.

Saio do cinema desamparado. Esta é a palavra: desamparado. Fui ver o filme “O Cheiro do Ralo” escrito por Lourenço Mutarelli, Marçal Aquino e dirigido por Heitor Dhalia, protagonizado pelo Selton Mello e fiquei assim. Pareceu-me que houve uma conjunção rara entre os autores – entre os quais, Selton Mello – que talvez tenha ido além deles mesmos. O filme se fez também sozinho. A diversidade dos atores, o acúmulo de situações trágicas, cômicas e perversas geraram um algo que costumamos chamar de “obra-prima”. (“Veja” deu-lhe três estrelas e classifica-o como “drama de humor negro”). Mas este filme é muito mais complexo. Cinco estrelas? Como explicá-lo “psicologicamente”? Ou “psiquiatricamente”? Saio do cinema sem saber. Que deseja este filme? Pensei em Kafka, em Pinter, em Bukowski, sei lá em quem, e fico com medo de julgar por baixo ou por cima. Enredo? Estorinha? Bem, Selton é um comprador de relíquias e bugigangas que despreza e humilha os clientes miseráveis que tentam se salvar vendendo alguma coisa, e nutre duas obsessões: a bunda de uma garçonete de botequim e um olho de vidro que comprou. Há um ralo no banheiro ao fundo que exala um cheiro horrendo que ele cultiva como uma fonte de vida. Tudo se passa em meio a uma cenografia baldia, entre muros pichados e paredes descascadas. Uma alegoria minimalista do nojo do que se passa no país. A cara mais suja de São Paulo nos olha da tela.

Terá algum sentido dizer que o filme é “importante”, útil para entender o Brasil, como dissemos diante de “Cidade de Deus”, por exemplo? Tem sentido buscar sentido numa obra que não pretende se explicar? O filme quer nos “conscientizar”? Claro que não. O filme não “cabe”; é inclassificável ou desclassificado. Será um “retrato de nossa situação psíquica dentro da esquizofrenia do capitalismo?” Ora...

Saio pela Avenida Paulista, louco para chegar em casa como para me proteger. Na rua, com milhares de pessoas passando de todos os lados, parecia-me que as via pela primeira vez. Senti, digamos, que há uma feiúra (não é a palavra), há talvez uma escrotidão urbana assumida nas roupas, nas caras, nos gestos, há uma poluição existencial incorporada para sempre, uma tragédia ignóbil, pobre, muda, que eu acabara de ver no filme.

Volto a me perguntar: que deseja esse filme? Provar alguma coisa? Ele é “crítica” ou “produto”? É um filme personagem de si mesmo? Talvez... Que queria Kafka denunciar na “Metamorfose”? Nada. Queria existir na sua realidade paralela. Este filme aponta para o mistério inquietante que a verdadeira obra de arte tem de ter. Não parte de idéias, mas de traumas, de medos, de pesadelos. Encontrar as idéias será tarefa para ensaístas.

No entanto, algumas certezas o filme me trouxe, (todas do lado do “não”): a primeira é que o “cheiro do ralo” está definitivamente instalado no presente e no futuro que nos espera no país, que não há reforma social ou psíquica que tape mais esse buraco, que não há conserto para o rumo em que as coisas vão e quando digo “coisas” são as “coisas” mesmo, a fumaça, o lixo urbano, a falta de dinheiro, a impossibilidade de governar, a estupidez, o crime imbatível, o horror instalado. Não é que o filme “condene” essas realidades como errôneas, ou “desvios”; não – o filme não denuncia, nem é melancólico ou “pessimista”. O filme abdica de qualquer esperança “sensata”, mas não é desesperado; ele apenas ri e chora por uma vida inevitável, já instalada no dia a dia do país, que a elite bocal não quer ver e românticos e acadêmicos também não. O cheiro do ralo é nosso oxigênio atual e talvez precisemos gostar desse odor, pois viveremos com ele para sempre.

Nosso país vai se dividir entre os que conseguirão escapar dessa tragédia parda, suja que já está aí e ignorar o cheiro do ralo e os que terão de se adaptar a ele. E falo de um cheiro dentro de nós, não do lado de fora. E também não falo de miséria, não. Esta é eterna e apodrecerá para sempre, pois ninguém fará nada contra ela. Estou falando dos homens comuns urbanos. Miséria existencial? Talvez, se comparada a nossos ideais iluministas do “bom” e do “sadio”.

Penso também que, na ausência de um sentido “geral” do filme, há milhares de sub-sentidos nos gestos dos atores, nas roupas, nos comportamentos dos tipos e personagens que denotam uma nova moral, um novo sexo, um novo (a palavra “novo” se aplica?) amor, uma solidão assimilada. “Madame Satã” tem um pouco disso, “Cidade Baixa” também. De qualquer forma, surgiu um novo cinema aí, melhor dizendo, alguns pontos luminosos apareceram recentemente. Este é um dos mais fortes.

Outra coisa espantosa (sem falar no baixo custo do filme) é que os atores agem como “autores” também. Cada ator traz um drama pessoal estampado na cara, traços biográficos que nos são ofertados cruamente. Aliás, onde se escondem esses atores geniais, longe da TV e do teatro careta? Com exceção do próprio Mutarelli, de Alice Braga, Paula Braun, e Suzana Alves, há tribos de talentosíssimos anônimos na periferia artística de SP e Rio.

Esse filme me fez lembrar de um filme fundamental de 68 (ano do AI-5 e nascimento da personagem de Selton) – o “Bandido da Luz Vermelha”, que adivinhou, profetizou a avacalhação em que vivemos hoje, quase quarenta anos depois. E Sganzerla sacou isso, desconfiado do heróico e ridículo suicídio da guerrilha urbana que se iniciava. “O cheiro do ralo”, para além dos petismos, tucanismos e lulismos, também parece prenunciar o que seremos daqui a alguns anos. Os filmes do cinema novo continham uma esperança histórica. Agora, eu diria que há uma tragédia conformada.

Apesar de nada mais ter importância (bons tempos em que “Terra em Transe” mexia na cultura brasileira...) este filme é muito importante sim; mostra que, daqui para frente, talvez precisemos aceitar o cheiro do ralo para respirar.

Esse Cheiro que vocês estão sentindo...

é de alegria.
Me contradizendo, vai outra entrada daqui mesmo do México, mas com novidades brasileiríssimas.
Devemos fechar a primeira semana do filme em cartaz com mais de vinte mil espectadores. Cara, isso é muito bom. E significa que o boca a boca que cada um de nós está fazendo ( e mais o Jabor e um monte de outros jornalistas geniais, claro) está funcionando.
Bora pra frente, que atrás vem gente.
Valeu galera. Genial.

Beijos Chicanos.

"La vida es dura..."


E ai galera. Tô amarradão com todos os comentários do blog. E peço desculpas porque ando muito ocupado e sem tempo de escrever aqui. La vida es dura. Neste momento, estou em Guadalajara, no México, promovendo o Cheiro no festival. Tá bom pra caralho. Podem cruzar os dedos e torcer por uma nova postagem com um prêmio bem bacana. Beijão

terça-feira, 13 de março de 2007